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Uso das teleperícias pelo INSS e ações judiciais decorrentes

A perícia médica, tanto no âmbito administrativo quanto no Judicial tem natureza de meio de prova investigatória junto à administração, que se apresenta como matéria de imprescindível necessidade probante – seja no interesse imediato do desvendar controvérsias, seja na sua função precípua de fornecer elementos para o alcance da verdade dos fatos. Nesse contexto, a prova pericial adquire sempre um certo status de superioridade em relação às outras provas que podem ser produzidas no processo. (MACEDO, 2017).

Entretanto, uma série de polêmicas em torno da atividade médico-pericial têm inflamado os debates entre os operadores do direito e os médicos, já que a ciência “Perícia médica” é sistematizada como um tipo de ponte entre Direito e Medicina (ALMEIDA, 2017). A mais recente controvérsia relacionada às perícias médicas tem relação com a necessidade de realização da perícia médica virtual em detrimento da presencial para concessão de benefícios previdenciários por incapacidade, em função do necessário isolamento social decorrente da pandemia de COVID-19.

Uma série de notas técnicas foram elaboradas por Associações de Médicos e conselhos de classe no sentido opinativo sobre a impossibilidade da teleperícia. De outro lado, exsurgiram atos normativos do Poder Judiciário, do Ministério Público no contexto do processo Judicial e do Tribunal de Contas da União no contexto do processo administrativo, orientando a realização de teleperícias.

A Telemedicina, conforme conceito determinado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) é um tipo de serviço relacionado aos cuidados com a saúde humana, tais como: prevenção e tratamento de doença; educação dos provedores de cuidados à saúde; pesquisas e avaliações em saúde; todos com o intuito de melhorar a saúde das pessoas e das comunidades em que vivem (OMS, 2010).

No Brasil, recentemente, o art. 3º da Lei 13.989/2020 definiu telemedicina da seguinte forma: “art. 3º. Entende-se por telemedicina, entre outros, o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde.”

Apesar do conceito acima exposto ter sido trazido a partir de uma legislação do ano de 2020, há muito já se praticava a Telemedicina no Brasil. Haviam outros atos normativos que já traziam o seu conceito e que permitiam a realização daquela técnica para a prática de atos inerentes à medicina. Foi justamente, diante de tal previsão, que vários órgãos, em função da crise decorrente da Pandemia de Covid 19, pensaram na possibilidade de ampliação do uso da Telemedicina para os serviços médicos relacionados às perícias.

Ocorre que, tão logo cogitada a utilização da Telemedicina aplicada para o ambiente das perícias médicas, em abril de 2020, o Conselho Federal de Medicina, a partir de uma consulta formulada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), proferiu o parecer nº 3/2020 que tratou das “teleperícias ou perícias virtuais”. A conclusão foi no sentido da impossibilidade da realização de Teleperícias, sob a afirmação que tratava-se de atividade essencialmente presencial. O texto conclusivo daquele parecer foi o seguinte: “O médico Perito Judicial que utiliza recurso tecnológico sem realizar o exame direto no periciando afronta o Código de Ética Médica e demais normativas emanadas do Conselho Federal de Medicina.”

A partir daquele parecer do Conselho Federal de Medicina, surgiram uma série de indagações por parte dos operadores de direito; dos juristas doutrinadores em Direito Previdenciário e dos órgãos estatais. O Ministério Público Federal, por exemplo, oficiou ao Conselho Federal de Medicina (Oficio 128/2020/PFDC/MPF), questionando, em resumo, o seguinte:

Com o escopo de diminuir a longa fila de requerimentos administrativos que aguardam análise pelo INSS e de dar atendimento célere aos novos requerimentos, bem como de possibilitar o andamento e desfecho das numerosas ações judiciais que discutem benefícios assistenciais e previdenciários, de forma a oferecer respostas ágeis à situação de crise instaurada pela pandemia do coronavírus (COVID-19), é preciso formular alternativas à perícia médica clássica no tocante aos benefícios assistenciais e previdenciários, visto que ela não consegue atender com a devida presteza a demanda urgente. Reitere-se que a concessão desses benefícios em caráter excepcional está sujeita à revisão posterior, tanto em âmbito administrativo, quanto judicial, apresentando-se efetivamente como medida excepcional e reversível. (grifos nossos)

Entretanto, mesmo diante do parecer do CFM, contrário à realização de Teleperícias, em maio de 2020 foi publicada a Resolução nº 317/2020 do CNJ que dispôs “sobre a realização de perícias em meios eletrônicos ou virtuais em ações em que se discutem benefícios previdenciários por incapacidade ou assistenciais, enquanto durarem os efeitos da crise ocasionada pela pandemia do novo Coronavírus”; e assim, em resumo, disciplinou:

art. 1º As perícias em processos judiciais que versem sobre benefícios previdenciários por incapacidade ou assistenciais serão realizadas por meio eletrônico, sem contato físico entre perito e periciando, enquanto perdurarem os efeitos da crise ocasionada pela pandemia do novo Coronavírus.

1º A perícia no formato estabelecido no caput deverá ser requerida ou consentida pelo periciando, a este cabendo:

[…]

2º O perito poderá, expressamente, manifestar entendimento de que os dados constantes do prontuário médico e a entrevista por meio eletrônico com o periciando são insuficientes para formação de sua opinião técnica.

3º As perícias que eventualmente não puderem ser realizadas por meio eletrônico, por absoluta impossibilidade técnica ou prática, a ser apontada por qualquer dos envolvidos no ato e devidamente justificada nos autos, deverão ser adiadas e certificadas pela serventia, após decisão fundamentada do magistrado (§ 2º do art. 3º e § 1º do art. 6º da Resolução CNJ nº 314/2020).

O Conselho Nacional de Justiça, então, sob a normatividade de regras hierarquicamente superiores às Resoluções editadas pelo CFM, sem conceituar expressamente o instituto da “Teleperícia”, afirmou ser possível a sua realização em função da pandemia de COVID-19.

Podemos, então, com apoio na dicção do art. 3º da Lei 13.989/2020, que conceituou a Telemedicina em função da COVID e da Resolução 317/2020 do CNJ conceituar a Teleperícia como “o exercício da medicina, mediado por tecnologias digitais, para realização de exame com a finalidade de colaborar com as autoridades administrativas, policiais ou judiciais na formação de cognição sobre fatos que, para serem esclarecidos, necessitam de conclusões extraídas a partir de conhecimentos técnicos especializados.”

Após a publicação da Resolução 317/2020 do CNJ, sobreveio um ambiente de insegurança entre os profissionais médicos que se dedicavam à perícia médica: se realizassem a teleperícia, poderiam, em função das recomendações emanadas do CFM, sofrer processo administrativo.

Com base nisso, em 06 de maio de 2020, o Ministério Público Federal publicou a Recomendação nº 4/2020/PFDC/MPF que, em síntese, recomendou :

 

RECOMENDA ao Conselho Federal de Medicina que, em processos administrativos e judiciais relativos a benefícios assistenciais e previdenciários:

a) Não adote quaisquer medidas contrárias à realização de perícias eletrônicas e virtuais por médicos durante o período de pandemia da COVID-19 (coronavírus);

b) se abstenha de instaurar procedimentos disciplinares contra médicos por elaboração de Parecer Técnico Simplificado em Prova Técnica Simplificada (arts. 464 e 472 do CPC; art. 35 da Lei 9.099; art. 12 da Lei 10.259) e perícia fracionada (onde é realizado um exame de documental – parecer simplificado –, posteriormente complementado com exame físico).

ADVIRTA-SE que a presente RECOMENDAÇÃO deve ser cumprida a partir de seu recebimento, sob pena das ações judiciais cabíveis, sem prejuízo da apuração da responsabilidade civil e criminal individual de agentes públicos.

ENCAMINHE-SE cópia da presente recomendação ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho da Justiça Federal.

Apesar da norma emanada pelo CNJ, bem como da Recomendação do MPF acima mencionada, as Associações de médicos peritos e o CFM permaneceram com a posição de “não aceitação da Teleperícia”.

Há pouco tempo, no entanto, o Tribunal de Contas da União- TCU, determinou, a pedido do CNJ, que o INSS- elaborasse um protocolo para realização das Teleperícias no âmbito daquela Autarquia previdenciária.

O INSS, em resposta, apresentou um projeto-piloto de teleperícia, mas apenas para a concessão do auxílio-doença para funcionários de empresas que tivessem convênio com o INSS. Durante o exame telepresencial, o trabalhador deveria estar acompanhado de um médico do trabalho da empresa para fazer os testes e responder às perguntas do perito do INSS, que vai estar do outro lado da videoconferência.

Depois da realização da teleperícia, o perito poderia: conceder o benefício; negar; ou determinar perícia presencial na agência da Previdência. De acordo com o projeto apresentado pelo INSS, a teleperícia não poderá ser feita para prorrogar o auxílio-doença ou para converter o auxílio em aposentadoria por incapacidade permanente.

Apesar de todos os esforços que vem sendo empreendidos na resolução do grave problema das filas do INSS para a concessão de benefícios previdenciários por incapacidade, a Associação Nacional dos Peritos Médicos Federais, que outrora já havia se manifestado contrário ao retorno dos peritos médicos às atividades presenciais ( elencou as deficiências logísticas para proteção àqueles profissionais e o risco de contágio em função da pandemia de coronavírus) recomendou que os profissionais não participem da teleperícia. Criticou o projeto apresentado pelo INSS e afirmou, em nota, que é “absolutamente ridículo, ilegal e imoral, e só abrange 10% dos segurados atendidos atualmente”.

O Conselho Federal de Medicina-CFM, até publicação deste artigo, ainda não se manifestou sobre as teleperícias no âmbito do INSS e nem mesmo sobre a proposta da Autarquia para o atendimento ao comando do TCU.

Diante de tantas divergências interpretativas, entendemos que eventual celeuma entre a normas infralegais (Resoluções; Pareceres; Recomendações) e a legislação ordinária deve ser resolvida a partir da análise sistemática e hierárquica das normas.

O art. 92 do Código de Ética Médica deve ser interpretado à luz dos primados Constitucionais relacionados à matéria, bem como das regras estabelecidas nas legislações infraconstitucionais especializadas.

Sem adentrar em questões subjetivas que apontam para soluções excludentes, entendemos que, com base na interpretação dada pelo CNJ, pelo MPF e pelo TCU ao art. 92 do Código de Ética Médica, deve prevalecer é a viabilidade da teleperícia, em alguns casos, durante o período de necessário isolamento social decorrente pandemia do COVID-19.

O que não se pode é ficar sem solução para o grave problema de acesso ao direito que tem sido imposto aos segurados do INSS. Caso a administração não ofereça a solução para o problema, é sempre recomendável que se busque a tutela judicial.

São inúmeras barreiras que estão sendo impostas ao acesso ao direito a que o segurado faz jus. Nem mesmo a verba indenizatória de um salário mínimo (que alguns chamam equivocadamente de “antecipação do auxílio-doença sem necessidade de perícia”) tem sido concedida de maneira eficaz (médicos assistentes, na maioria dos casos, se recusam a preencher o atestado tal como exigido por norma infralegal editada pelo INSS).

E aqueles segurados que conseguiram receber a verba indenizatória, como conseguirão receber as diferenças devidas? (Há de se lembrar que a Renda Mensal Inicial-RMI de muitos benefícios são superiores ao Salário Mínimo). Será que daqui um ano (mais ou menos) um perito do INSS ou Judicial terá condições de analisar fatos pretéritos para, então, fixar com coerência e justiça a DII (data de início da incapacidade)? Ou dirão, como em muitos casos, que “só foi possível fixar a DII na data da perícia”?

É essencial que o segurado esteja acompanhado de advogado de sua confiança para que, com base em toda a documentação médica produzida, possa elaborar corretamente os quesitos a serem respondidos pelos peritos; persuadir a autoridade sobre o peso e relevância do conjunto probatório produzido e, eventualmente, impugnar o resultado de perícias que sejam claramente prejudiciais ao segurado.

Na verdade, não só nos casos de benefícios previdenciários por incapacidade, mas em todos os casos em que o cidadão buscar tanto a tutela administrativa quanto a judicial, recomenda-se que esteja acompanhado de advogado/defensor de sua confiança. Isso, pois, apesar da oferta de acesso gratuito ao âmbito administrativo do INSS e do jus postulandi na Justiça Federal, há casos em que a análise fática; a instrução probatória; e a argumentação trazida pelo patrono farão toda a diferença na concessão do direito e, inclusive, na percepção de parcelas pretéritas e eventuais indenizações pelo dano moral gerado.

Nesse sentido, não é demais relembrar a dicção do artigo 133 da Constituição Federal de 1988, que diz: ” Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.” (grifos nossos)

 

REFERÊNCIAS

 

ALMEIDA, E. H. R. de. Perícia e especialidades médicas. Disponível em: http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=26828:2017-03-31-18-05-49&catid=46. Acesso em 29 abr 2020.

BRASIL. Lei nº 13.989, de 15 de abril de 2020. Dispõe sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2). Diário Oficial da União; República Federativa do Brasil, Seção 1, 16 abr. 2020, p.1

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Parecer nº 3/2020. Disponível em: https://sistemas.cfm.org br/normas/visualizar/pareceres/BR/2020/3. Acesso em 01 mai 2020.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, Resolução CFM nª 317/2020. Disponível em: http://ajufe.org.br/images/pdf/Resoluc%CC%A7a%CC%83o_CNJ_teleperi%CC%81cia.pdf. Acesso em: 31 de maio de 2020

MACEDO, A. da C. Benefícios previdenciários por incapacidade e perícias médicas: teoria e prática. Curitiba: Juruá, 2017.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Ofício 128/2020/PFDC/MPF. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pfdc/manifestacoes-pfdc/oficios/oficio-128-2020-pfdc-mpf/view. Acesso ee: 01 mai 2020.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Recomendação 4/2020/PFDC/MPF. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pfdc/manifestacoes-pfdc/recomendacoes/recomendacao-4-2020-pfdc-mpf/view. Acesso ee: 01 mai 2020.

OMS. Telemedicine: Opportunities and developments in Member States. Disponível em: https://www.who.int/goe/publications/goe_telemedicine_2010.pdf. Acesso em: 04 de maio de 2020.