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Equívocos interpretivos na utilização de critérios objetivos e subjetivos para concessão do BPC-LOAS

ANÁLISE DE CASO CONCRETO – SENTENÇA E RECURSO

 

 

Fernanda Carvalho Campos e Macedo – Advogada; Sócia Fundadora do Escritório Carvalho Campos & Macedo Sociedade de Advogados; Presidente do IPEDIS; Especialista em Direito Público; Trabalho e Processo do Trabalho; Previdenciário e Securitário; Professora, palestrante e Conferencista; Graduanda em Ciências Contábeis; Coautora do Livro: Ônus da prova no Processo Judicial Previdenciário- Editora Juruá, 2018; e

Jessicka Oliveira de Assis – Advogada; Bacharel em Direito na UFJF; Associada do Escritório Carvalho Campos & Macedo Sociedade de Advogados; Conselheira Científica do IPEDIS; Licencianda em Letras; MBA em Data Science e Analytics (USP); Pós Graduanda em Advocacia Extrajudicial;

Palavras-Chave: LOAS; BPC; renda per capita; critérios objetivos; critérios subjetivos; eletrodomésticos; INSS; ilação; arbitrariedade; sentença; recurso; Supremo Tribunal Federal.

 

Introdução

 

Sob a ótica da subjetividade, alguns juízes de primeiro grau, principalmente no âmbito dos Juizados Especiais Federais, ao verificarem o preenchimento dos requisitos objetivos (renda per capita, deficiência ou idade legal) do benefício de prestação contínua (BPC) da Lei Orgânica da Assistência Social, avançam para análise de critérios subjetivos (sob interpretação equivocada), restringindo o acesso ao direito de forma “arbitrária” (esta sendo entendida apenas como uma decisão dependente da vontade ou de julgamento pessoal), com premissas pautadas nas suas íntimas convicções acerca do que é ou não é “ser miserável” para fins de acesso ao direito previsto em Lei.

O risco da “arbitrariedade” sempre rondou o Poder Judiciário, principalmente quando equivocadas interpretações da vontade legislativa são verificadas e primados processuais-constitucionais são aplicados de maneira, igualmente, equivocada, tal como o do “livre convencimento motivado”.

O juiz deve, sim, interpretar os fatos e provas conforme seu livre convencimento, mas há molduras constitucionais e legais a serem respeitadas, entre as quais se destacam os princípios reitores da atividade judicante.

É preciso estar sempre vigilante no que tange ao brocado:  ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus, que significa, em resumo: “Onde o legislador não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo”. Não pode o Juiz prejudicar aquele a quem o preceito visa, justamente, proteger.

Expliquemos e, aqui, se faz necessário esclarecimento sobre um caso concreto que analisamos recentemente e que foi objeto, inclusive, de recurso à instância superior sobre decisão de juiz de primeiro grau do Juizado Especial Federal (como os fins do artigo são acadêmicos, não se citará o juiz prolator da decisão e nem mesmo a localidade) que, a nosso sentir, interpretou equivocadamente a questão dos requisitos objetivos e subjetivos para concessão do Benefício de Prestação Continuada ao Deficiente e, sob juízo ilativo sobre os fatos, julgou improcedente o pedido, tendo sido necessário o competente recurso contra tal decisão.

 

  1. DOS FATOS – EM RESUMO

Tratou-se, na origem, de pedido administrativo para concessão de Benefício de Prestação continuada à pessoa com deficiência, conforme autorizativo legal previsto na LOAS – Lei de Organização da Assistência Social.

Tendo sido indeferido o pedido de BPC – deficiente, na esfera administrativa, pelo não reconhecimento do enquadramento ao critério da deficiência (ponto controverso), o Autor ajuizou a ação contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para que o seu direito fosse concedido através da via judicial.

O autor da ação tinha a sua saúde comprometida por diversas doenças que lhe retiravam a capacidade plena e efetiva para participação em atividades na sociedade. Ademais, residia, de favor, com sua irmã e com seu sobrinho, tendo demonstrado, a partir dos dados do CADúnico, a renda per capita de R$133,00 (cento e trinta e três reais).

Ocorre que, em sentença proferida por Juiz Federal do Juizado Especial Federal, o pedido foi julgado improcedente, apesar daquele juízo ter reconhecido a deficiência (que era o ponto controvertido trazido à tutela jurisdicional), pois entendeu, a partir de critérios subjetivos, que o requisito da miserabilidade não restou comprovado.

O magistrado aduziu, em sua sentença, com base em perícia socioeconômica realizada na residência do autor, que a situação de miserabilidade não poderia ser reconhecida em razão da presença de móveis em bom estado de conservação, bem como de aparelho de som, violão e uma cadeira giratória.

Entendeu, também, o juízo primevo, que o sobrinho do autor, residente no mesmo local, “embora desempregado” e não pertencente ao grupo familiar, “possuía perfeitas condições para o labor”.

Ainda, aquele juízo questionou a renda familiar contida no CADúnico, com base em ilações probalísticas, conforme se verá nos trechos da sentença que abaixo traremos à baila.

 

  1. DA SENTENÇA- EM RESUMO

 

Abaixo, apenas os trechos da sentença que compuseram a delimitação da controvérsia recursal:

‘’Sendo assim, conclui-se que a família tem possibilidades de aumento das fontes de renda e a tutela estatal para suprir eventuais necessidades deve ser sempre a última opção (… ) Nestes termos, não resta configurada a situação de vulnerabilidade social e econômica (grifos nossos), pois a parte autora possui todos os insumos básicos para uma vida digna (…) ’Destaca que a residência na qual vive o presente grupo familiar é alugada pelo valor de R$550,00, composta por dois quartos, cozinha e banheiro, guarnecidos por fogão, geladeira, televisão, microondas e maquina de lavar roupas, todos em aparente bom estado de conservação. A conta de luz é de cerca de R$130,00. Apesar das fotos colacionadas demonstrarem a modéstia da moradia, é possível observar ainda um aparelho de som, violão, uma cadeira giratória para jogos de videogame. Ainda que o sobrinho do autor não componha o núcleo familiar, nos termos do art. 20, § 1º, da Lei nº 8.742/93, vive sob o mesmo teto e embora desempregado atualmente, possui capacidade laborativa, estando formado desde meados de 2020, podendo ajudar na renda familiar, ainda que em trabalho informal. Da mesma forma, se a irmã realiza pelo menos 03 faxinas semanais, ao valor de R$100,00, a renda não será aquela informada’’ (grifos nossos).

 

  1. DAS RAZÕES PARA REFORMA DA SENTENÇA – ARGUMENTOS JURIDICOS

            A seguir, expõem-se os motivos pelos quais a sentença deve ser reformada.

3.1. Da irrelevância da existência de bens e da alegada possibilidade de labor do sobrinho do autor

Não se poderia, sob perspectiva lógica, permitir o avanço para critérios subjetivos (como a existência de “aparelho de micro-ondas”, “violão”; “aparelho de som” ou “casa organizada e pintada”) para a denegação do direito assegurado em lei. Esta interpretação não é extraída de nenhum dos precedentes uniformizadores da Jurisprudência, por mais que o INSS sempre “force barra” para tal conclusão, em suas peças de defesa.Ademais, em qual linha da Lei 8.742/93 há restrição para o acesso ao direito sob a constatação de que uma pessoa tem “uma cadeira própria para jogos” ou que tem “um violão”. Todos que possuem algum(s) bem(s) são presumivelmente “não miseráveis” para fins de concessão do BPC? Critérios tão subjetivos podem gerar graves equívocos e, certamente, essa não foi a intenção do legislador e nem do Constituinte originário ou o do Derivado.

Ainda, não havia como atrelar de forma absoluta os referidos bens expostos pelo magistrado na sentença ao Requerente. Era sabido, conforme as provas juntadas ao processo, que o Autor, na condição de vulnerável, residia “de favor” na casa de sua irmã. Sendo assim, era ofensivo ao princípio da razoabilidade entender que, pelas condições peculiares do Autor, todos os residentes não pudessem ter adquirido alguns bens por seus próprios esforços ou mesmo por doações. Aquele autor, que “mora de favor” na casa da irmã, deveria, por questões de vontade legislativa (intepretação teleológica da Lei 8.742/93 e da CF/88) ter condições para prover a sua subsistência mínima sem retirar as condições doe vida digna do grupo familiar que o acolheu.

Por mais, ainda que todos da família (e não do grupo familiar para fins legais) estivessem em condições de hipossuficiência financeira, e ainda que, por mera hipótese, que aqueles utensílios domésticos citados pelo juiz tivessem qualquer relação com o autor da ação, não se poderia saber em que condições, preços e oportunidades foram adquiridos. Podem ter sido doados, comprados a partir dos longos carnês das Casas Bahia em outras épocas quando as condições econômicas eram melhores etc. Ora, a ocorrência da Pandemia de Covid-19 evidenciou que uma pessoa pode passar de “bem de vida” à “miserável” em um “piscar de olhos”. Alguém pode ter uma boa casa, bons móveis, mas, se perder sua renda, em pouco tempo pode se tornar alguém que não possua meios para prover a sua própria manutenção.A propósito, a dicção do Art. 2º, I, e, da Lei 8742/93 é bem clara:

Art. 2o  A assistência social tem por objetivos:

I – a proteção social, que visa à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos, especialmente:

(…)

        1. e) a garantia de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família; (BRASIL, 1993, grifamos).

A lei fala em meios para prover a manutenção própria ou tê-la provida pela família. Sendo esta interpretada à luz da Constituição Federal, que dá várias disciplinas sobre a proteção da dignidade humana, fica fácil perceber que o critério objetivo da renda per capita só pode dar lugar a questões subjetivas quando estas puderem relativizar o eventual não atendimento ao critério objetivo estabelecido por lei para a concessão do benefício assistencial em comento.

Não há nenhuma previsão legal que condiciona o estado de miserabilidade do cidadão ao desfazimento de bens que podem ter sido conquistados em épocas em que a situação econômica da família estava melhor. O que importa, na análise, são as questões objetivas e subjetivas (aquelas que relativizam o critério objetivo quando este não é atendido, tal como: gastos com aluguel; medicamentos; luz etc) atuais e não as remotas. Como dito, alguém pode ter tido uma vida digna no passado e ter sucumbido à miserabilidade por questões sócio-políticas e econômicas e isso é fato público e notório.

Portanto, descaracterizar o estado de miséria em razão da existência, no imóvel de eletrodomésticos básicos é argumento jurídico subjetivo muito fraco, uma vez que não faz prova material concreta da não existência da miserabilidade, pelo contrário, na maioria das vezes, contrariam todo o alicerce probatório levado à juízo.

O Direito não deve estar ao bel-prazer das suposições subjetivas de magistrados, sob pena de ferir a segurança jurídica e o Estado Democrático de Direito, deixando o Direito de socorrer aqueles que, preenchido os requisitos legais, fazem jus.

3.2. Da alegada capacidade laborativa do sobrinho do autor para a ajuda no sustento familiar

A respeito da capacidade laborativa do sobrinho do Autor, tratada pelo juízo do caso em estudo como causa que possibilitaria a superação do estado de miserabilidade, mais uma vez tratou-se de argumento equivocado, por inúmeras razões, tais como as que abaixo exemplificamos:

    1. Não basta que o sobrinho do autor quisesse trabalhar para ajudar no sustento familiar, era necessário que tivesse oportunidades de trabalho em um mercado que não oferece empregos (são, aproximadamente, 14 milhões de desempregados no país);
    2. O sobrinho não compunha o núcleo familiar, conforme expressa previsão legal do art. 20, §1º, da Lei 8.742/93 ( 1o Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto);
    3. Ainda que exercesse o labor (questão meramente hipotética do futuro), não haveria obrigação do sobrinho de arcar com todo o sustento do o tio que “mora de favor na sua casa”. Seria preciso avaliar se eventual ajuda do sobrinho se enquadraria no trecho do art. 2º, I, e, da Lei 8742/93 (que fala em sustento do deficiente pela família) e se não retiraria suas próprias condições de subsistência digna. Ora, há casos em que os jovens, no mercado de trabalho atual, ganham o suficiente para seu transporte e alimentação, apenas.

3.3. Das alegações do juízo sobre  trabalho e renda da irmã do autor

 

Em um ponto da sentença acima transcrito, o magistrado questionou a renda per capita apresentada, de R$133,00 (cento e trinta e três reais), conforme se extraía do Cadastro Único anexado ao processo. É importante ressaltar, nesse contexto, que o CADúnico é a forma que muitos brasileiros têm de demonstrar que estão em situação de vulnerabilidade social e tal critério pode ser relativizado por firme prova em contrário, ônus que cabe ao INSS no caso da denegação do BPC. Entretanto, no caso em estudo, o juízo recorrido, em ilação subjetiva sobre os fatos, afirmou que ‘’se a irmã realiza pelo menos 03 faxinas semanais, ao valor de R$100,00, a renda não será aquela informada’’.

Ocorre que as informações que foram anexadas aos autos remetiam aos seguintes pontos de natureza   fático-probatória:

a) “ A irmã do autor era diarista e realizava até três faxinas por semana”;

b) “ As faxinas variavam entre R$ 50,00 e R$100,00”;

c) “o Autor informou que as atuais rendas da família eram advindas das faxinas de sua irmã e somavam-se, às vezes (quando conseguia fazer faxinas três vezes por semana) um valor aproximado de R$ 900,00 por mês” .

Imaginemos, pois, que a média de faxinas feitas pela irmã do autor fosse de R$ 75,00 (setenta e cinco reais), posto que entre R$ 50,00 e R100,00, conforme informação do laudo sócio econômico.

Se a irmã do autor fizesse, realmente, as três faxinas por semana, sempre, teria realmente a renda de R$ 225,00 por semana, o que geraria, o valor de R$ 900,00 por mês.Portanto, a construção hipotética do magistrado de que a irmã do autor faria três faxinas semanais a R$100,00 não correspondeu ao que se tinha de prova nos autos. Tratou-se, pois, de mero juízo de “ilação”.Poder-se-ia até dizer que a renda per capita informada pelo CADúnico de R$ 133,00 não correspondia à situação atual (R$ 900,00 por mês), mas se deveria apurar, antes, se as informações do CADúnico estavam condizentes com a atual situação, por ocasião da perícia socioeconômica (que geralmente é realizada até um ano depois do pedido administrativo original no INSS). Entretanto, mesmo restando provado nos autos que a renda familiar era de R$ 900,00 mensais atualmente e, interpretando-se que todos os moradores compunham o grupo familiar, a renda familiar objetiva per capita seria de R$ 300,00, ou seja, menos de ½ salário minimo, e, sim, consoante o posicionamento atual do STF, legítimo como critério objetivo de apuração da miserabilidade familiar.Ainda assim, fazendo-se uma correta valoração subjetiva dos fatos e provas, dever-se-ia descontar, no caso concreto, daquela renda familiar de R$ 900,00, o valor gasto pela família com aluguel (R$ 550) e com conta de luz (R$ 130,00) pelo menos, o que geraria um valor mensal de R$ 220,00 para alimentação e demais gastos.

Com os cálculos acima, pergunta-se: É possível que alguma família, no Brasil, consiga sobreviver (alimentação + transporte + medicamento) com apenas R$ 220,00 mensais?

Diriam os juízos ilativos de quem pode ter uma certa dose de preconceito ou de presunção de má fé das pessoas:

Mas como alguém que tem as condições acima teriam condições para ter um microondas e um violão em casa?”

Os progressistas, que eventualmente defendessem a presunção da boa-fé das pessoas, responderiam, também em juízo hipotético:

“ A família originária pode ter adquirido tais bens antes do familiar deficiente ter que residir de favor em sua casa; A família originária pode ter adquirido tais bens quando a irmã do autor estava casada e seu ex-esposo provia o sustento familiar; a família originária pode ter recebido ter adquirido tais bens por doação de terceiros; a família originária pode ter tido condições econômicas melhores em outras épocas e não se desfez dos bens que adquiriu”.

  1. AS CONDIÇÕES PARA APLICAÇÃO DO CRITÉRIOS OBJETIVOS E SUBJETIVOS NOS CASOS DE BPC-LOAS

Desde a publicação da Lei 8.743, a limitação de renda familiar à ¼ do salário mínimo foi alvo de grandes críticas, pois limitava a proteção constitucional a apenas uma parcela da população que não conseguia prover o próprio sustento e partir de um critério objetivo há muito superado na classificação internacional e nacional sobre miserabilidade.

A aplicação única deste limite de ¼ do SM de renda per capita, pelos intérpretes, permitia que pessoas em notória situação de miserabilidade e segregação social assim permanecessem, em razão de suas rendas extrapolarem, mesmo que em alguns casos, minimamente, o critério legal. O uso irrestrito desta regra acabou gerando flagrante desigualdade no tratamento de iguais, ou seja, naquelas parcelas mais socialmente vulneráveis da população.

Tamanha era a constatação de inconstitucionalidade do referido critério como único a ser usado para aferição da miserabilidade da pessoa, que o Ministério Público Federal, na condição de fiscal da Lei, interpôs a ADIN 1232-1 no Supremo Tribunal Federal, a qual foi julgada no a no de 1998. O STF, apesar de uma maioria apertada, julgou improcedente aquela ação (não havia efeito vinculante, já que o julgamento foi anterior à Lei 9.868/99).

A ausência de efeito vinculante fez com que os Tribunais Brasileiros permanecessem aceitando a utilização de critérios objetivos mais consentâneos da realidade (½ salário mínimo de renda per capita) e subjetivos (gastos com medicamentos, alimentação, moradia etc) para a concessão do benefício. A ratio decidendi era pautada em interpretação teleológica de que o legislador pretendeu proteger a pessoa que não tivesse condições mínimas de dar um sustento digno para si para os seus familiares.

Diante das frequentes decisões que afastavam o critério da renda per capita de ¼ do SM, aplicado de forma absoluta pelo INSS, a autarquia previdenciária interpôs, no Supremo Tribunal Federal, a Reclamação 4.374/PE.

Ocorre que o STF, ao contrário do que pretendia o INSS, reconheceu que teria ocorrido um processo de inconstitucionalização da regra estabelecida no art. 20, § 3º, da LOAS, em razão das mudanças políticas, econômicas, sociais e jurídicas ocorridas no Brasil nos 20 anos seguintes à publicação da Lei.

Da simples leitura do voto do Ministro Relator Gilmar Mendes, foi possível extrair que aquele reconhecimento de inconstitucionalidade superveniente da norma decorreu da compreensão de que o critério legal de ¼ do salário mínimo seria insuficiente para identificar os casos de miserabilidade que a Constituição e a Lei se propunham a combater.

Assim, o que o STF fez não foi afastar o critério objetivo para apuração da miserabilidade da família, mas permitir que critérios objetivos outros (½ SM de renda per capita) e, sequencialmente (caso não se conseguisse apurar a miserabilidade por aquele critério, ainda), subjetivos (que conseguissem demonstrar a miserabilidade real e não o contrário).

Entretanto, apesar da evidente ratio protetiva daquela decisão do STF, a inconstitucionalidade do critério legal passou, então, a ser defendida de forma distorcida pela autarquia previdenciária e por alguns juízes com o objetivo de negar o direito ao benefício.

  • Critério objetivo legal como presunção relativa de miserabilidade do requerente do BPC

 

Sob os pedidos indecorosos do INSS, aqueles mesmos juízes que chegaram a argumentar a objetividade e caráter absoluto do critério de renda per capita no período no qual se discutia a constitucionalidade do §3º do art. 20 da lei 8742 na AD 1232-1/DF, passaram a defender, depois do julgamento do STF acima mencionado, a necessidade de análise do contexto socioeconômico do requerente, mesmo nas hipóteses nas quais exista perfeito enquadramento legal da renda per capita familiar.

Como bem dito por Sabrina Nunes Vieira et al. (2019), em trabalho publicado na Revista Nacional da Defensoria Pública da União:

Dados até então meramente acidentais constantes dos laudos socioeconômicos juntados às demandas, passaram a ser apontados como fundamento principal para indeferimento de benefícios. A renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo deixaria de ser indicador seguro da miserabilidade para se tornar, segundo as conjecturas do INSS, mero dado a ser considerado em cotejo com outras informações sobre a realidade socioeconômica familiar. Logo, a autarquia previdenciária passou a apontar elementos dos mais variados como o estado de conservação da residência, a existência de eletrodomésticos, o fato de se tratar de imóvel de grandes dimensões, ainda que em péssimo estado de conservação, além de muitos outros, como indicadores da mais alta relevância para fins de avaliação da situação socioeconômica familiar, mesmo para aqueles cuja renda per capita era inferior a 1/4 do salário mínimo (VIEIRA, 2019, grifamos).

Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, no entendimento firmado no REsp 1.112.557/MG, julgado sob a sistemática dos recursos repetitivos, tema 185 da corte, expressamente reconhece que a a renda per capita inferior ao critério objetivo legal (¼ do salário mínimo) deve ser usada como critério suficiente quando verificada a exigência legal, obstando o avançar para critérios subjetivos nesses casos. Nesse sentido é o trecho da tese firmada pelo STJ:

A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo (STJ, 2009, grifos nossos).

Há quem esteja confundindo o assunto, ainda. Vejamos que, no âmbito da TNU, quando do julgamento do PEDILEF 5000493-92.2014.4.04.7002/ PR, em 2016 trouxe a ideia da flexibilização da presunção absoluta da miserabilidade a partir do critério objetivo da renda per capita. Nesse sentido é o trecho da tese firmada:

O critério objetivo consubstanciado na exigência de renda familiar per capita inferior a ¼ do salário-mínimo gera uma presunção relativa de miserabilidade, que pode, portanto, ser afastada por outros elementos de prova (TRF-4, 2014, grifamos)

Ocorre que tal posicionamento da TNU refere-se apenas à questão do ônus da prova remetido ao INSS de demonstrar, por exemplo, que o segurado possui outras rendas e que tais rendas permitem a exclusão da sua miserabilidade e não ao contrário.

Inclusive, quando se investiga, amiúde, o conjunto fático-probatório abrangido pelo evento concreto levado à apreciação da TNU naquele julgado, é possível observar que, na realidade, se está diante de hipóteses de ocultação de renda e não sobre situação de móveis da residência.Não se poderia, pois, afirmar que uma pessoa que um dia possuiu uma boa condição de vida, com uma casa ampla, não poderia ter ficado miserável (sem o mínimo de renda para viver dignamente) permanecendo morando na mesma casa de outrora. Ora, há pessoas que sequer conseguem vender o imóvel por razões documentais, de dividas etc.

Principalmente no decorrer da Pandemia de Covid-19, ficou muito clara uma questão social: pessoas que viviam muito bem, que tinham bens (carro, moto, casa) ficando em estado de flagrante miserabilidade social, sem recursos mínimos à subsistência e dependentes de Auxílios-emergenciais (Assistência Social) do Governo.

Há, sim, pessoas que conseguiram construir uma casa confortável, que adquiriram bons móveis, mas que de um ano para o outro passaram a não ter condições mínimas de manutenção da sua dignidade e da provisão alimentar, inclusive. Tais pessoas, então, estariam excluídas da proteção do BPC-LOAS? Essa foi a intenção do legislador?

A despeito de uma perniciosa interpretação da Lei, da Constituição e até mesmo do precedente do STJ e TNU acima transcritos, a questão continua a ser apresentada aos tribunais e Turmas Recursais Brasil a fora, como no caso ora em estudo.

  1. LIMITES INTERPRETATIVOS AO CRITÉRIO SUBJETIVO

Diante do que foi exposto, é possível inferir que o BPC-LOAS possui critérios objetivos de destinação (pessoas portadoras de deficiências de curto ou longo prazo e idosos de 65 anos ou mais que comprovem não possuir outros meios de subsistência), pautados, principalmente, no que se refere à aferição de miserabilidade, no critério de ¼ (um quarto) do salário mínimo vigente.

Apesar do critério objetivo de ¼ do SM ser o que está previsto expressamente na Legislação, o critério objetivo de ½ SM já foi indicado pelo STF como Constitucional, devido aos fatores sociais em evolução que fizeram com aquele parâmetro ficasse viciado pela inconstitucionalidade fosse considerado como único critério objetivo.

A flexibilização do critério objetivo, de acordo com o lastro probatório colacionado aos autos, pode levar à interpretação de que a renda miserável seja de ½ (meio) salário mínimo per capita, como o é no caso da aplicação do PNAA (Plano Nacional de Acesso a Alimentação).

Sim, uma vez superado o novo critério objetivo de ½ SM e ainda assim a renda per capita não se adequar a este patamar, para verificação da miserabilidade real, é possível adentrar em critérios subjetivos.

No entanto, pergunta-se: qual deve ser o limite da interpretação subjetiva e, consequentemente, o limite discricionário do magistrado?

Uma interpretação sistemática das normas à luz da Constituição Federal só nos permite entender que o limite do magistrado na apuração da miserabilidade está no quanto uma família tem de renda, quanto desta renda é usada com gastos existenciais ( moradia, alimentação, saúde, higiene, energia elétrica e agua) e quando sobra para manutenção de uma vida digna. Tudo que estiver além disso nos parece “ arbitrário” e restringe mais do que legislador quis restringir.

Critérios subjetivos, nesse contexto, são exatamente os gastos que a família tem para necessidades básicas e existenciais e que reduzem, com isso, a sua renda comprovável, deixando-os, eventualmente, em situação de miserabilidade real ou material.

A miserabilidade formal, assim, seria aquela constatada apenas pela renda per capita e a miserabilidade real ou material seria aquela obtida como resultado de uma simples equação matemática: Renda familiar – Gastos existenciais = Miserabilidade real ou não. Abaixo, um exemplo hipotético para a fórmula que sugerimos:

Renda familiar (R$900,00) Gastos existenciais (R$ 550,00- Aluguel + R$130,00- Luz + R$ 250,00- alimentação = R$930,00) = Valor que sobra para outros gastos também existenciais (transporte; Lazer; Saúde = R$ – 30,00)

Como se vê, no exemplo acima, o valor que sobra para gastos, igualmente existenciais é negativo, o que deixa clara a miserabilidade material da família e do indivíduo que pleiteia o BPC-LOAS.

No plano da constitucionalidade interpretativa, há que se compreender que o processo judicial previdenciário possui lógica sui generis, devendo ser regido, para além dos princípios legais, por primados constitucionais como o da “máxima proteção social” e da “efetivação dos direitos sociais”.

Dessa forma, quando um juiz estiver na dúvida (o fato de possuir um microondas em casa, por exemplo) se uma pessoa é ou não miserável, mesmo diante de todas as provas que se declinam para a demonstração da miserabilidade, a teleologia constitucional aponta para a necessidade de interpretação in dubio pro misero (CARVALHO CAMPOS; MACEDO, 2018), ou seja, em favor do mais hipossuficiente na relação litigiosa travada (Segurado X INSS).

  1. O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS DO TRF4 E A POSSIBILIDADE DO IRDR NO AMBITO DO TRF1

Como na maioria das vezes, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região avançou na vanguarda. O IRDR 5013036-79.2017.4.04.0000/RS14 foi admitido em processo que tramitava perante o Juizado Especial Federal, tendo contado com a manifestação de diversos órgãos e entidades atuantes no seguimento, na qualidade de amicus curiae, dentre os quais a Defensoria Pública da União, que apresentou exposição no sentido da fixação de tese de presunção absoluta do critério objetivo legal da renda per capita familiar. Do julgamento do incidente, ocorrido em 21/02/2018, foi fixada a seguinte tese jurídica:

O limite mínimo previsto no art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 (‘considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário-mínimo’) gera, para a concessão do benefício assistencial, uma presunção absoluta de miserabilidade (TRF-4, 2018, grifamos).

O princípio da “vedação à proteção insuficiente”, bem ilustrado pela DPU e refletido em parte no pronunciamento do STF sobre o tema “inconstitucionalidade do parâmetro de 1/4 do salário mínimo como único parâmetro” são as tônicas que devem orientar as decisões dos juízes primevos e de segundo grau sobre a matéria.

O entendimento exarado na Reclamação 4.374/ PE ou mesmo no REsp 1.112.557/MG, em que se permite a análise de outros parâmetros, além da renda, para fins de constatação da miserabilidade, deve ser corretamente interpretado à luz do primado da “vedação à proteção insuficiente”, e com caráter acessório, apenas quando constatada a superação do limite legal. Ou seja, o Juiz só pode avançar em critérios subjetivos (gastos familiares com alimentação, saúde, transporte, energia e outros) quando, superada a renda per capita legal, suspeitar que a pessoa permanece “miserável” mesmo com uma renda um pouco maior do que o limite legal.Não se pode, sob perspectiva lógica, permitir o avanço para critérios subjetivos (como a existência de “aparelho de micro-ondas”, “violão”; “aparelho de som” ou “casa organizada e pintada”) para a denegação do direito assegurado em lei.

O recente julgamento do IRDR 5013036- 79.2017.4.04.0000/RS pelo TRF da 4ª Região com fixação de tese que privilegia uma interpretação constitucionalmente adequada do §3º do art. 20 da lei 8.742/93, pode ser usado como “uma vela para escuridão” de alguns intérpretes e ajudar na convicção do juiz justo.

É preciso procurar meios de superar a “insegurança jurídica” que paria sobre esse tema, também no âmbito dos Juizados Especiais Federais no território do TRF1. Para isso, o IRDR pode ser uma boa solução, tal como se fez no âmbito do TRF4.

Por isso, esse texto, além de trazer fundamentos teórico-práticos para os colegas da advocacia, conclama-os a se unir a nós para possamos, reunindo os julgados dos JEF’s que demonstrem a  efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito (avanço em critérios subjetivos quando da presença de critérios objetivos que remetem à concessão do direito), propor o IRDR e consigamos, enfim, a uniformização da jurisprudência favorável ao interesse dos segurados e dos nossos clientes.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relativização de conceitos e a extrema subjetividade podem favorecer a marginalização social de parcela ainda maior da população que poderia, ao contrário, estar sendo protegida.

A incongruência da interpretação dada por julgados como este, analisado in concretu, contra o qual se recorreu, mas que ainda é objeto de insegurança (afinal, as turmas recursais não têm exercido, adequadamente, sua função revisora) acabam construindo uma ponte para o “abismo” e para a negação do que se quis pacificar no âmbito dos Tribunais Superiores em correta interpretação das normas. O recente julgamento do IRDR 5013036- 79.2017.4.04.0000/RS, pelo TRF da 4ª Região, com fixação de tese que privilegia uma interpretação constitucionalmente mais adequada do §3º do art.20 da lei 8742/93 oferece um certo alento a muitos brasileiros (idosos e deficientes) que vêm sofrendo com a relativização do conceito de miserabilidade, sob a adoção de critérios preconceituosos e de extrema subjetividade. Entretanto, a eficácia regional daquele instrumento processual nos invoca à reflexão para o que podemos fazer por aqui.

Esse ensaio, portanto, tem o duplo objetivo de trazer, ao estudo, caso prático com intensas repercussões interpretativas do plano teórico e de conclamar os colegas advogados para buscarmos, juntos, soluções mais efetivas para o problema apresentado.

 

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REFERÊNCIAS

BRASIL, LEI Nº 8.742, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências.

BRASIL. STJ – REsp: 1112557 MG 2009/0040999-9, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 28/10/2009, S3 – TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: –: DJe 20/11/2009.

BRASIL. STF – Rcl: 4374 PE, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 18/04/2013, Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-173 DIVULG 03-09-2013 PUBLIC 04-09-2013.

BRASIL. TRF-4 – INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS (SEÇÃO): 50130367920174040000 5013036-79.2017.4.04.0000, Relator: PAULO AFONSO BRUM VAZ, Data de Julgamento: 21/02/2018, TERCEIRA SEÇÃO.

BRASIL. TRF-4 – RECURSO CÍVELl: 5000493-92.2014.4.04.7002/PR, 5000493-92.2014.4.04.7002, relator: MARCUS HOLTZ, Data de Julgamento: 31/10/2014, SEGUNDA TURMA RECURSAL DO PR.

CARVALHO CAMPOS MACEDO, Fernanda; MACEDO, Alan da Costa. Ônus da prova no processo judicial previdenciário à luz do novo código de processo civil, 2018.

VIEIRA, Sabrina Nunes et al. Considerações sobre a presunção absoluta de miserabilidade na LOAS: uma análise à luz da tese definida no IRDR 5013036-79.2017. 4.04. 0000/RS julgado pelo TRF da 4ª Região. Revista da Defensoria Pública da União, n. 12, p. 275-293, 2019.