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Ensaio Sobre o Dano Existencial no Direito Previdenciário

Fonte da Imagem: Jornal Gazeta do Povo 25/10/2012

 

Por:  Fernanda Carvalho Campos e Macedo – Advogada; Sócia Fundadora do Escritório Carvalho Campos & Macedo Sociedade de Advogados; Presidente do IPEDIS; Especialista em Direito Público; Trabalho e Processo do Trabalho; Previdenciário e Securitário; Professora, palestrante e Conferencista; Graduanda em Ciências Contábeis; Co-autora do Livro:  Ônus da prova no Processo Judicial Previdenciário- Editora Juruá, 2018; e

 

Palavras Chave: Dano Existencial; Dano Moral; Direito Previdenciário; INSS; Dignidade da pessoa humana; Poder Judiciário; Juizado Especial Federal; Devido Processo Legal.

 

Questões gerais sobre o dano existencial

 

O dano existencial é um tipo de lesão, de caráter subjetivo, extrapatrimonial, que advém, basicamente, de qualquer ofensa relacionada a direito humano e fundamental da pessoa.

Verifica-se este tipo de dano a partir de uma ação (dolosa ou culposa) que acaba gerando, na vítima, uma mudança agressiva no seu cotidiano normal, trazendo bruscos reflexos na sua relação com a família, com os amigos e com a sociedade de uma maneira geral.

Trata-se de um dano relacionado à própria “existência da pessoa” em condições normais. Muito ligado à dignidade da pessoa humana, o dano existencial ocasiona a deterioração da “ felicidade”, da projeção de um projeto de vida pessoal ou familiar.

Apesar de guardar certa similitude, em termos característicos, com o dano moral, o dano existencial vai além de um sofrimento, consternação ou abalo da honra, pois se refere a uma frustração de uma expectativa de poder exercer algo que se projeta no campo pessoal, familiar ou social.  Trata-se de uma lesão a um “projeto de vida”.

Em alguns casos concretos, é possível identificar lesões à honra subjetiva ( dano moral) e ofensas diretas à existência ou projeto de vida da pessoa ( dano existencial), o que permite dizer que há possibilidade de cumulação de danos e , igualmente, de dever reparatório pelo agente agressor.

Apesar da clara distinção, a jurisprudência dos Tribunais ainda é tímida na diferenciação entre institutos. A maior parte dos precedentes trata o dano existencial como uma espécie do gênero dano moral.

O direito do trabalho já enfrentou a questão do dano existencial em inúmeros casos concretos em que este tipo de lesão é verificada. Muitas vezes, um acidente de trabalho, por exemplo, frustra um projeto de vida a própria existência digna e feliz de um ser humano.

No campo do direito Civil, por se tratar de direito de personalidade, o dano existencial também é objeto de estudo e reflexão diante das divisões conceituais que envolvem os danos patrimoniais e os extrapatrimoniais.

Objeto de reparação na esfera Cível, o dano de natureza extrapatrimonial tem sido questão pesquisada, em grande medida, a partir de uma perspectiva da função social do instituto da responsabilidade civil e é, aqui, que as vertentes trabalhistas e cíveis se encontram para uma tese acerca do espraiamento do instituto para a esfera previdenciária.

No capítulo adiante, traremos algumas breves reflexões sobre a possibilidade de se reconhecer dano existencial no contexto da seguridade social, mormente no pilar da previdência social.

 

O dano Existencial no Direito Previdenciário – reflexões sobre hipóteses e a responsabilidade indenizatória do Estado.

 

No Brasil, a previdência social organiza-se como um subsistema do Sistema Nacional de Seguridade Social no qual convivem três regimes, quais sejam: o regime geral da previdência social; os regimes próprios de previdência social, relativo aos servidores públicos da União, Estados e Municípios e o regime de previdência complementar. (MACEDO e MACEDO, 2018, p.14)

O direito a benefício previdenciário, no contexto da seguridade social, é um direito fundamental social. A sua finalidade é, precipuamente, proteger o segurado de riscos inerentes a sua sobrevivência digna, ou seja, são garantidores de um mínimo existencial daqueles.

Os Benefícios previdenciários são reconhecidos pelo sistema normativo internacional de direitos humanos e fundamentais como bens jurídicos indispensáveis para garantir, entre outros, a própria existência da pessoa (vida no trabalho, convivência em sociedade).

Nesse contexto, os embaraços ou chicanas injustificadas à concessão ou à manutenção dos benefícios previdenciários acabam expondo o segurado a situações extremamente degradantes do ponto de vista humano. As pessoas, em situação de aviltamento moral pela denegação do direito que lhe é assegurado, também são expostos a danos psicossomáticos e a danos irreparáveis relacionados aos seus propósitos de vida digna.

Em muitos casos, os danos causados pela obstrução de acesso a bens jurídicos fundamentais e existenciais não podem ser reparados do mesmo modo como são os danos causados a outros bens jurídicos não diretamente relacionados com a dignidade da pessoa humana. Nesse passo, a simples restituição de parcelas não pagas no momento devido não é capaz de assegurar a justa compensação pelos danos sofridos.

O Direito a um benefício previdenciário está intimamente relacionado ao Direito fundamental da “Liberdade”. Um tipo de “liberdade real” que contempla não apenas o direito de ir e vir, mas sim o de projetar como quer viver dignamente e quando poderá, então, exercer o direito ao descanso remunerado. Nessa perspectiva, o Professor Savaris ( 2011) foi pontual:

 

A liberdade real só pode ser exercida pela pessoa com recursos mínimos para sobreviver, planejar sua vida e dela fazer algo valioso. Se a liberdade física, traduzida no direito de ir e vir, é vista como uma inegociável expressão da dignidade humana, da mesma forma a liberdade real, em oposição à liberdade formal, deve ser pensada como um direito inalienável do ser humano, o direito de ir e vir, e viver. De que liberdade se fala afinal quando o indivíduo é cercado pela destituição, subnutrição e apenas com esforço extraordinário consegue ―vender sua força de trabalho‖ para prover seu sustento imediato? (SAVARIS, 2011 a, p. 88).

 

Entretanto, não apenas na perspectiva de ofensa indireta à liberdade do cidadão que se pauta a questão do dano existencial, mas no sentimento social de que há um certo “desrespeito” por parte do Estado por questões coletivas existenciais e de dignidade. Um tipo de insegurança que atinge a todos, mesmo aqueles que ainda não foram afetados por alguma daquelas ofensas, mas que, por alteridade ou empatia, se colocam no lugar das vítimas.

É consternador saber que o titular de direitos previdenciários, em muitos casos, por sua condição de hipossuficiência intelectual, ao ter seu pedido rejeitado, sequer tem entendimento sobre o tipo de lesão que pode ter sofrido, pois desconhece a questão da extensão dos seus direitos fundamentais, os quais são precedentes dos seus direitos securitários.

O dano existencial, então, bem próximo, mas diferente do dano moral previdenciário seria, exatamente aquele que não pode ser medido com uma régua objetiva, pois atinge núcleos relacionados a direitos humanos e fundamentais ligados à “expectativa de felicidade”.

Assim, embaraços ou impedimentos arbitrários ao usufruto das prestações previdenciárias que afetarem a possibilidade de manutenção da vida digna, afetam a capacidade de autodeterminação e projeção de futuro da pessoa humana e a sua existência condigna com os seus iguais, podem causar danos patrimoniais, morais e existenciais de forma cumulativa, em determinadas situações.

Partindo-se do pressuposto de que o dano existencial não tem origem interna e que é causado por uma ofensa que atinge, frontalmente, o interesse de um indivíduo, impedindo-o de realizar um projeto de vida feliz (aquilo que cada um idealiza como felicidade), fica mais fácil entender que o dano existencial não se confunde com o dano moral e vai além deste.

Não se pode dizer que o “impedimento de um projeto de vida” seja apenas uma simples “perda de chance” (instituto comum às esferas cíveis e trabalhistas) ou de uma mera lesão que gerou um atraso na realização de um sonho; e sim uma decretação de “fim de linha” ou a declaração de que um “projeto de vida” não pode ser mais realizado.

O dano ao “projeto de vida”, é, por conseguinte, um tipo de lesão que transcende a esfera psicossomática da pessoa humana. Atinge a alma, consterna e faz desacreditar no ideário de justiça. Trata-se de algo tão radical que compromete o sentido de vida justa e as expectativas existenciais do indivíduo.

O dano que frustra o projeto de futuro, a expectativa de uma vida menos sofrida e mais confortável e que obriga o ser humano a resignar-se com um futuro que lhe foi imposto pelo agente agressor, certamente, deve ser bem mais grave do que diversas condutas consectárias do dano moral.

Como se sabe, a “pessoa humana” deve ter lugar central na elaboração das normas, na ideia de Estado, de Nação e de Governo. Sem a valoração do ser humano como causa e razão de existir do próprio Estado, há de se questionar qual a lógica civilizatória se procura na construção dessas abstrações.

É justamente, nesse contexto, que o texto Constitucional adota o ser humano como prioridade e assegura a ele o pleno exercício dos seus direitos existenciais e fundamentais, imputando ao Estado o dever de zelar pela sua segurança e pelo pleno exercício daqueles direitos. Tal dever do Estado é o que se revela na sua “responsabilidade” jurídica de não permitir que qualquer ato dos seus agentes possa gerar lesões que comprometam os projetos de futuro das pessoas.

Assim, o direito previdenciário, como algo que se relaciona intrinsecamente com o “projeto de vida” de milhares de pessoas que sonham em um dia, depois de muito trabalho, conquistar a proteção social da aposentadoria e do devido descanso, pode e deve ser trazido ao debate sobre o dano existencial.

Em algumas situações, o segurado da previdência social, preenchendo todos os requisitos necessários ao  recebimento de um benefício temporário ou permanente por incapacidade laboral, de posse de documentos robustos que demonstram a referida incapacidade ( laudos de médicos especializados, receitas farmacológicas  e exames de imagem, laboratoriais e físicos), por embargos administrativos injustificados, não conseguem exercer o direito à prestação pecuniária correspondente e entram em completa falência material, psicológica e moral.

Na maioria das vezes, a frustação do direito decore de erro médico ou “má vontade” pericial, de equivocada exegese das normas, da inobservância de direitos já interpretados por jurisprudência dominante, de extravio de processos e até por descumprimento de decisões recursais administrativas e, em alguns casos, judiciais.

Casos como estes deixam o segurado em situação de verdadeiro “ drama existencial”, tendo que retornar ao trabalho sentindo dores e prejudicando ainda mais suas condições físicas e psicológicas decorrentes da incapacidade laboral ou mesmo tendo que contar com a caridade dos familiares, amigos e terceiros para não sucumbir, literalmente, à fome e a mendicância.

Como bem dito pelo Professor José Antônio Savaris (SAVARIS, 2011a, p. 60)  , a concessão de um benefício previdenciário se refere ao direito de não depender da benevolência ou da misericórdia e a ofensa a tal direito gera um dano irreparável à sua condição de ser humano que precisa manter o mínimo para uma vida digna.

Podemos exemplificar, aqui, como hipótese lógico-indutiva  e no contexto de ensaio, algumas  possibilidades de ofensa aos núcleos de direitos humanos e fundamentais que podem ser classificados como dano existencial.

Em alguns expedientes normativos do próprio Conselho Federal de Medicina, há menção a atentado a dignidade da pessoa humana quando se força alguém a trabalhar quando se está doente e incapaz para o trabalho.

Entretanto, há situações em que a concessão de aposentadoria por invalidez (um benefício de caráter mais permanente), sem uma tentativa de reabilitação ou readaptação profissional também frustra expectativas e atrapalha, completamente, o projeto de vida de um segurado.

Existem casos em que o segurado, jovem, iria se desenvolver em alguma carreira, conseguir vantagens financeiras para aí, sim, conquistar o descanso remunerado digno. Os processos de reabilitação ou readaptação profissional poderiam permitir que aquele jovem permanecesse contribuindo para os cofres da previdência, evoluindo em alguma carreira (e aumentando o salario de contribuição) e , ao fim, podendo realizar o seu projeto de aposentadoria. Uma vez que, indevidamente a Administração Pública frustra esse direito, em alguns casos pode-se cogitar a existência de um dano existencial.

Há casos em que a responsabilidade civil pelo dano existencial é da entidade empregadora, mas a consequência jurídica se espraia para o direito previdenciário. O benefício previdenciário concedido seria uma consequência da conduta do empregador e as discussões sobre as responsabilidades cumuladas acabam fazendo parte do cotidiano forense.

A jurisprudência do STJ e do TST nos parecem consonantes no sentido de que as prestações pagas pelos órgãos previdenciários em razão de incapacidades decorrentes de acidentes do trabalho ou de doenças de caráter laboral não devem ser consideradas para efeito de fixação da indenização pelos danos materiais, morais e existenciais devidas pelo empregador em caso de dolo ou culpa daquele.

Os posicionamentos do TST e STJ parecem estar alinhados na coerência argumentativa de que as ações por acidentes de trabalho ou doenças de causas profissionais por serem de natureza alimentar, podem ostentar caráter compensatório e indenizatório, mas sem guardar relação com a responsabilidade securitária do Estado (natureza jurídica de seguro propriamente dita, que não se confunde com compensação ou indenização decorrente de responsabilidade civil).

Uma coisa é o dever de concessão do benefício previdenciário pela Administração Pública independente da responsabilidade pela ocorrência da incapacidade laboral do segurado e outra é a configuração de ação ou omissão do órgão previdenciário a gerar um segundo direito, desta vez indenizatório por eventual dano gerado ( dano existencial, por exemplo).

Ainda, em termos hipotéticos, podemos cogitar a existência de dano existencial de responsabilidade do Estado Administrador ( órgão previdenciário que nega um beneficio devido na esfera administrativa) e do Estado Juiz ( que, com sua morosidade, acaba frustrando a percepção do benefício) quando um segurado, ao ter seu beneficio previdenciário indevidamente indeferido, uma vez buscando a tutela judicial, passa anos e anos sem exercer o seu direito em função da morosidade do processo judicial e acaba falecendo no curso do processo.

Vejam-se que houve a “frustração de um projeto de vida” e isso nos parece irrefutável. Imagine se a concessão do beneficio previdenciário no momento devido não podia ter dado mais qualidade de vida ao segurado e, inclusive, contribuído para a não ocorrência da morte precoce? Seria plausível dizer que, se no caso de dano moral à pessoa falecida (atributos como: nome, reputação dignidade, imagem etc), haveria legitimidade dos parentes colaterais, o mesmo poder-se-ia aplicar a hipótese do dano existencial de natureza previdenciária? São questões que merecem ser melhor analisadas em outros trabalhos.

Certa feita, observamos um caso concreto, em que um senhor que havia trabalhado a maior parte da sua vida como gerente de banco, ganhando alto salário e tendo contribuído durante longos anos para o INSS, foi demitido e teve que, diante do desemprego e falta de vagas no mercado para o exercício de função similar a que tinha outrora, trabalhar como frentista, ganhando pouco mais do que o salário mínimo nacional.

Quando completou o  tempo de contribuição necessário para a aposentadoria, o INSS lhe calculou o salário de benefício e, para sua tristeza, deixou de considerar o período de frentista como trabalho especial e ainda lhe apresentou a RMI (renda mensal inicial) um pouco acima do salário mínimo, concedendo-lhe, há época, a aposentadoria por tempo de contribuição proporcional.

Aquele senhor, que trabalhou a vida quase toda contribuindo sobre alto salário, tinha a expectativa de se aposentar com um provento digno, que lhe permitisse o descanso honrado ao lado de sua esposa (que a vida toda se dedicou aos trabalhos do lar), mas foi frustrado pela conclusão do INSS.

Irresignado, o cidadão, então, procurou a tutela judicial para revisar aquele ato, o qual considerava equivocado e injusto. Ocorre que, diante da possibilidade garantida em lei de buscar a tutela judicial sem advogado ( Ius postulandi) nos Juizados Especiais Federais, a partir de um “indevido processo legal”, sem uma correta atividade instrutória, de forma lacônica e superficial, teve o seu caso equivocadamente analisado e seu pedido julgado improcedente, tendo o feito transitado em julgado.

Apesar das possibilidades jurídicas (em tese) para rediscutir o caso (relativização da coisa julgada secundum eventus probationes, por exemplo), nossa hipótese, aqui, revela o dano existencial na esfera previdenciária.

O Estado Administrador, personificado pelo INSS, teria dado o “primeiro tiro” no projeto de vida daquele Senhor e o Estado Juiz, personificado pelo Juizado Especial Federal, teria dado o “tiro fatal”.

Se as teses que podem ser trazidas para que o Judiciário reaprecie os fatos e provas não forem acatadas, terá aquele cidadão sofrido um dano existencial pelo impedimento de um projeto de vida feliz a partir da sua tão sonhada aposentadoria, a qual lhe daria a dignidade de um bom descanso e de uma boa qualidade de vida na velhice.

Seria possível, então, mediante a apresentação de um bom contexto fático-probatório, imputar a responsabilidade ao Estado pelo dano existencial verificado?

Nós, os operadores cotidianos do direito, sabemos que, a cada dia, a luta por justiça (aquela que na sua concepção mais simples e bela se traduz na “ entrega do direito a quem o tem”) tem sido tarefa cada vez mais difícil.

O Poder Judiciário que deveria ser “o grande herói” guardião da justiça, em alguns casos, passa a ser o grande vilão, maculador daquela. Sob as premissas de “celeridade”, atacam mortalmente a “efetividade”. Sob o primado da eficiência (destaque pela busca constante de cumprimento de metas), atropelam do devido processo legal.

Nesse contexto, é bem difícil que eventual lesão a direito existencial no contexto previdenciário seja reconhecida e atribuído o dever indenizatório ao Estado, seja ele administrador ou Juiz.

E quando o Poder Judiciário é a última fronteira, a quem recorrer?  Esse será o tema do nosso próximo ensaio.

REFERÊNCIAS

MACEDO, Alan da Costa; MACEDO, Fernanda Carvalho Campos e. Ônus da prova no processo judicial previdenciário. Curitiba: Juruá, 2018.

SAVARIS, José Antônio. Direito Processual Previdenciário. 3ª ed. Curitiba: Juruá, 2011a.