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A visão monocular e o direito a benefícios previdenciários por incapacidade e a BPC-LOAS no INSS

A visão monocular e o direito a benefícios previdenciários por incapacidade e a BPC-LOAS no INSS

Lei 14.126/2021 considera visão monocular deficiência sensorial

 

 

Por:  Fernanda Carvalho Campos e Macedo – Advogada; Sócia Fundadora do Escritório Carvalho Campos & Macedo Sociedade de Advogados; Presidente do IPEDIS; Especialista em Direito Público; Trabalho e Processo do Trabalho; Previdenciário e Securitário; Professora, palestrante e Conferencista; Graduanda em Ciências Contábeis; Co-autora do Livro:  Ônus da prova no Processo Judicial Previdenciário- Editora Juruá, 2018

 

A visão monocular é mais comumente conhecida como “cegueira de um dos olhos”. Esta grave restrição nas funções oftalmológicas é considerada já era considerada como “deficiência” em diversos estados da federação brasileira, tendo também passado a ser considerada uma deficiência visual no âmbito federal em março de 2021, quando foi convertido na Lei Ordinária 14126/2021, o PL 1615/2019, de autoria do Senador Rogério Carvalho (PT/SE).

A Organização Mundial de Saúde há muito já classificou a visão monocular como “deficiência visual” em razão da perda da visão binocular (nos dois olhos) no processo de formação da visão. Sempre se soube que as pessoas portadoras daquela deficiência apresentam limitações médicas, psicossociais, educacionais e profissionais, além disso, em muitos casos, sofriam toda sorte de preconceito e descriminação.

No âmbito do direito previdenciário, diante do fato de que nem toda “ deficiência” gera a efetiva “incapacidade laboral” para todo e qualquer trabalho, cada caso sempre teve que ser observado com suas particularidades. Principalmente, no que se refere ao tempo em que se adquiriu a deficiência ( adaptação da visão monocular em níveis cerebrais) e às atividades inerentes à profissão do segurado.

A perícia médica, principalmente, a que ocorre no âmbito do processo judicial tem que ser muito bem realizada e sob o acompanhamento atento do advogado que assessora o segurado. Isso, pois, os quesitos formulados, os documentos que instruem o processo e os argumentos sobre a incapacidade laboral são essenciais para o usufruto do direito.

Há de se estabelecer um nexo causal e consequencial entre a deficiência constatada e o exercício laboral da profissão habitual do segurado, levando-se em conta a possibilidade de reabilitação profissional consoante aspectos de ordem biopsicossocial.

O precedente do TRF1 abaixo transcrito demonstra bem a importância de se analisar a profissão desempenhada pelo segurado e relaciona-la à referida deficiência, o tempo que ela existe para, então, se concluir pela capacidade ou incapacidade laboral. O caso ilustrado refere-se a uma “ enfermeira”, que nas suas atividades profissionais exige acurácia visual no manuseio de seringas, ampolas, observação de exames e maquinários que monitoram as condições clinicas do paciente entre outras diversas atividades que, certamente, estariam comprometidas com a deficiência constatada.

PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AUXÍLIO-DOENÇA. QUALIDADE DE SEGURADO. INCAPACIDADE LABORATIVA. DIREITO RECONHECIDO. TERMO INICIAL. RESTABELECIMENTO. CONVERSÃO EM APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. (…) A perícia médica é condição indispensável à cessação do benefício de auxílio-doença, pois, somente ela poderá atestar se o segurado possui ou não condição de retornar às suas atividades laborativas. 3. A perícia judicial é no sentido de que a segurada, auxiliar de enfermagem, possui incapacidade total e irreversível, que teve início com o deslocamento da retina em 2001 (fls. 37/39). Esclarece o perito que a parte autora é portadora de visão monocular, tornando-a incapaz permanentemente para a sua atividade laboral. 4. Mantida a qualidade de segurado no momento da incapacidade laborativa, conforme documentos de fls. 11/47, pois a incapacidade é desde 2001, tratando-se da mesma doença, cujo benefício de auxílio-doença foi cessado em 30/04/2006 (fl. 12) por alta programada. (…)  5. A prova pericial analisada demonstra a incapacidade laboral da parte autora com a intensidade e temporalidade compatíveis com o restabelecimento do benefício de auxílio-doença e sua conversão em aposentadoria por invalidez. 6. Correção monetária e juros de mora conforme Manual de Orientação de Procedimentos para os Cálculos na Justiça Federal em sua versão mais atualizada à época da execução. 7. Apelação do INSS não provida. Remessa oficial provida em parte. (TRF-1 – AC: 00024241320064013307, Relator: JUIZ FEDERAL PEDRO BRAGA FILHO, Data de Julgamento: 01/06/2015, 1ª CÂMARA REGIONAL PREVIDENCIÁRIA DA BAHIA, Data de Publicação: 24/11/2015)

Um outro ponto importante a se levar em conta neste tipo de análise é o conceito mais amplo de “incapacidade laboral”, que contempla os riscos iminentes a incolumidade física do próprio segurado ou de terceiros pelo exercício de sua profissão sob acometimento de determinada patologia ou deficiência sensorial.

Um mecânico de motor diesel, por exemplo, em inúmeras situações tem que trabalhar com o motor ligado e fazer ajustes em peças nessas circunstâncias. Sabendo-se que a visão monocular tem como limitação a visão de profundidade, aquele profissional poderia se acidentar gravemente se permanecesse naquela profissão com a deficiência apresentada. De igual maneira, o pedreiro que sobe constantemente em andaimes e precisa ter boa noção de profundidade para não se acidentar. Esses são exemplos da importância de uma análise cuidadosa da profissiografia (técnica que apura as atividades de uma profissão e seu nexo com eventuais riscos do exercício da atividade) no contexto dos fatos que são apresentados ao estudo.

O Benefício de Prestação continuada –BPC, previsto na LOAS (Lei de Organização da Assistência Social) prevê, em seu artigo 20, a concessão do benefício assistencial a pessoas com deficiência.

Art. 20.  O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.

§ 2oPara efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.    ( grifos nossos)

A Turma Nacional de Uniformização da Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais, instada a se manifestar em Pedido de Uniformização, deu “uma aula” sobre questões que há muito destacamos sobre a deficiência na formação dos peritos médicos judiciais na Legislação Previdenciária e Assistencial, bem como da falta de segurança jurídica criada por decisões judiciais viciadas pela falta de análise biopsicossocial.

No caso abaixo analisado, a pessoa até que podia ser capaz para o exercício de outra profissão que não a seu habitual, mas o legislador protege a “deficiência” como condição que vai além da mera incapacidade laboral e sim um tipo de incapacidade biopsicossocial. Nesse sentido:

 

INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL AO DEFICIENTE. PORTADOR DE VISÃO MONOCULAR. DECRETO 3.298/99. INCAPACIDADE PARCIAL E PERMANENTE. INCAPACIDADE QUE DEVE SER CONJUGADA COM AS CONDIÇÕES PESSOAIS. SÚMULA 29 DA TNU. ESTUDO SOCIOECONÔMICO NÃO REALIZADO. QUESTÃO DE ORDEM 20/TNU. INCIDENTE CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO (…)  Alega a parte autora em seu recurso que o entendimento da Turma Recursal de origem diverge de orientação pacificada por esta TNU (PEDILEF 2007.83.03.5014125), no sentido de que o portador de visão monocular faz jus ao benefício assistencial (LOAS deficiente). Aduz ainda que a Súmula 377 do STJ reconhece a condição incapacitante do portador de visão monocular. (…) . Como se sabe, a jurisprudência desta Turma Nacional de Uniformização é remansosa no sentido de que a parcialidade da incapacidade não impede, por si só, o deferimento do benefício perseguido, sendo de rigor a análise das condições pessoais da parte e da possibilidade da sua reinserção no mercado de trabalho. Nessa esteira, a Súmula 29 desta Corte afirma que, para os efeitos do art. 20, § 2º, da Lei n. 8.742, de 1993, a incapacidade para a vida independente não é só aquela que impede as atividades mais elementares da pessoa, mas também a que a impossibilita de prover ao próprio sustento. No caso vertente, verifico que o acórdão recorrido, após efetuar interpretação da prova médico-pericial, afirmou que a autora é capaz para o trabalho, só que, passo seguinte, atestou categoricamente que ela é cega do olho esquerdo (visão monocular) e possui visão embaçada (20/60) no olho direito, podendo desempenhar outra profissão que não a de cabelereira. Todavia, sendo a requerente portadora de deficiência visual grave, a mesma se enquadra no conceito de deficiência previsto no art. 4º, III, do Decreto nº 3.298/99, que regulamentou a Lei 7.853, de 24/10/1989 (dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência), mostrando-se irrelevante, portanto, que o expert tenha consignado sua capacidade para atividades laborativas. A propósito, a Súmula 377 do STJ reconhece essa condição ao asseverar que “o portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes”. Reputo que a condição da autora, retratada no acórdão recorrido, por si só, já representa um quadro de incapacidade severa, deixando a sua portadora, inclusive, com grandes dificuldades para competir no mercado normal de trabalho, máxime em tempos como estes, nos quais as pessoas com sentidos favoráveis já padecem para conseguir um emprego para sua sobrevivência. Assim, é imperioso que se afirme nesta oportunidade a incapacidade parcial e permanente da autora, hoje com 55 anos de idade, e, ato contínuo, determine-se a instância “a quo” a que proceda ao exame das condições socioeconômicas da requerente, na esteira do entendimento consolidado por esta TNU nas Súmulas 29 e 80. Por conseguinte, deve ser anulado o acórdão recorrido para que se cumpra esse desiderato, especialmente em face da impossibilidade de reexame de matéria fática por esta TNU. Ante o exposto, CONHEÇO do Incidente de Uniformização para DAR-LHE PARCIAL PROVIMENTO, anulando o acórdão recorrido a fim de que, superada a questão da incapacidade laboral da autora, sejam analisadas as condições pessoais desta pela Turma Recursal de origem, nos termos da Questão de Ordem 20/TNU, com novo julgamento da causa, como entender de direito, com observância da Súmula 29 desta TNU. Sem honorários. Incidente conhecido e parcialmente provido. (TNU – PEDILEF: 00037469520124014200, Relator: JUIZ FEDERAL JOSÉ HENRIQUE GUARACY REBÊLO, Data de Julgamento: 11/09/2015, Data de Publicação: 09/10/2015, grifos nossos)

A falta de uma Lei específica federal que classificasse a visão monocular como de “natureza sensorial” fazia com que muitos juízes, muitas vezes sob equivocadas conclusões periciais, deixassem de conceder o benefício assistencial. A atual vigência a Lei 14121/2021 pôs fim a celeuma, quando disse expressamente:

Art. 1º Fica a visão monocular classificada como deficiência sensorial, do tipo visual, para todos os efeitos legais.

Parágrafo único. O previsto no § 2º do art. 2º da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), aplica-se à visão monocular, conforme o disposto no caput deste artigo. (grifos nossos)

Considerando a legislação supra citada e os precedentes judiciais citados, acreditamos que muitas pessoas portadoras de visão monocular podem usufruir daqueles direitos quando preenchidas os demais requisitos da LOAS (para BPC) e da Lei 8.213/91 para benefícios previdenciários por incapacidade.

Recomendamos, entretanto, que o cidadão, ao buscar a justiça, esteja acompanhado de advogado/defensor de sua confiança. Isso, pois, apesar da oferta do jus postulandi, há casos em que a análise fática; a instrução probatória (e aqui, recomendamos que se faça, previamente,  o pedido administrativo com o correspondente cálculo do valor da cobrança a fim de que fique claro o interesse de agir e não se alegue depois, na via judicial, o contrário, extinguindo-se o feito sem resolução do mérito); a argumentação trazida pelo patrono farão toda a diferença na concessão do direito e, inclusive, na percepção de parcelas pretéritas. Nesse sentido, não é demais relembrar a dicção do artigo 133 da Constituição Federal de 1988, que diz: ” Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.”

                                                                                     “dormientibus non succurrit jus”