A adoção é um ato jurídico que pode ser conceituado como a inclusão de uma pessoa em uma família distinta da sua biológica ou natural, gerando-se vínculos de filiação natural, bem como os respectivos e correspondentes direitos e deveres, inclusive os relacionados a herança.
O termo é originado do latim adaptio, que significa “ato ou efeito de adotar”(1) Tipo de vínculo jurídico que atribui parentesco em primeiro grau à relação entre o adotante e o adotado.
A adoção, embora pareça ser um assunto bem conhecido pela sociedade moderna, ainda é tema de muita insegurança jurídica e informalidade, o que pode prejudicar sobremaneira o “ melhor interesse da criança”.
Dentre outras modalidades de adoção, há aquela que se alcunhou como “adoção intuitu personae”, que é uma forma de adoção dirigida, pessoal ou “em razão da específica pessoa”. Trata-se de modalidade em que os pais biológicos do infante, ou apenas um deles (eis que na maioria dos casos o pai biológico é desconhecido e a indicação para adoção é feita pela mãe), ou, ainda, o representante legal do adotando, aponta aquele que vai ser o adotante.
Tal rotina era muito comum antes da Lei 12.010/2009 e, em muitos casos, respaldada pela jurisprudência diante da ausência de proibição legal. Em muitas cidades do interior, principalmente, onde a população local era oriunda de hábitos simples e cultura tradicional, sempre foi muito comum a outorga da guarda de filhos a vizinhos, tios, primos e avós que, além de constituírem laços de afetividade para com o infante, demonstravam também boas condições financeiras para proporcionar mais dignidade à sua criação.
Em muitos outros casos, a mãe biológica, diante do filho indesejado, com pai desconhecido, com a vida pautada em drogas, prostituição e outras mazelas sociais, para não deixar o filho em situação de total abandono, preferia indicar uma família que desejasse adotá-lo.
Publicada em julho de 2009, entretanto, a Lei 12.010/2009, introduziu novos dispositivos no Estatuto da Criança e do Adolescente, especialmente para o procedimento para adoção, fazendo com que aquilo que já era, de certa forma, aceito pelas decisões judiciais acerca da adoção intuitu personae, ficasse mais limitado e restrito a apenas algumas hipóteses.
O art. 50, §13º da Lei 12.010/2009, assim definiu as exceções à impossibilidade da adoção dirigida:
“Art. 50. A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção.
(…)
§ 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando:
– se tratar de pedido de adoção unilateral;
– for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade;
– oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei. ( grifos nosssos)
É certo que a ideia da legislação foi coibir os abusos que vinham sendo cometidos, quando adotantes com excelentes condições financeiras praticamente “compravam” as crianças de pessoas em situação de marginalização social.
Todavia, também há críticas à citada normativa no sentido de que pretendeu controlar demais as relações privadas sob a ideia de que todos agem pautados em desvios de finalidade ou má-fé. Na época da edição da citada lei, muitos diziam que as regras relacionadas à adoção pretendiam restringir a liberdade individual, violar o poder familiar (quando impedia que os pais biológicos escolhessem quem lhes parecia ter as melhores condições socioeconômicas e culturais, bem como psicológicas para lhes substituir no exercício da paternidade).
Considerando o posicionamento da doutrina e da jurisprudência, mesmo após a edição da Lei 12.010/2009, acreditamos que ainda seja possível a modalidade de adoção intuitu personae, já que as regras impostas a partir da inclusão do §13 de seu art. 50 no Estatuto da Criança e do Adolescente podem e devem ser interpretadas sistematicamente junto às demais normas daquele Estatuto, à luz da Constituição Federal, para que cada caso concreto mereça um tratamento de equidade a gerar justiça na sua acepção mais bela e objetiva: dar o direito a quem o tem.
Nesse sentido, embora não explicitamente destacada no texto legal, a adoção dirigida ainda encontra respaldo nos termos do ECA, senão observemos atentamente a transcrição do seu artigo 166:
Art. 166. Se os pais forem falecidos, tiverem sido destituídos ou suspensos do poder familiar, ou houverem aderido expressamente ao pedido de colocação em família substituta, este poderá ser formulado diretamente em cartório, em petição assinada pelos próprios requerentes, dispensada a assistência de advogado.
§ 1o Na hipótese de concordância dos pais, esses serão ouvidos pela autoridade judiciária e pelo representante do Ministério Público, tomando-se por termo as declarações.
§ 2o O consentimento dos titulares do poder familiar será precedido de orientações e esclarecimentos prestados pela equipe interprofissional da Justiça da Infância e da Juventude, em especial, no caso de adoção, sobre a irrevogabilidade da medida.
§ 3o O consentimento dos titulares do poder familiar será colhido pela autoridade judiciária competente em audiência, presente o Ministério Público, garantida a livre manifestação de vontade e esgotados os esforços para manutenção da criança ou do adolescente na família natural ou extensa.
§ 4o O consentimento prestado por escrito não terá validade se não for ratificado na audiência a que se refere o § 3o deste artigo.
§ 5o O consentimento é retratável até a data da publicação da sentença constitutiva da adoção.
§ 6o O consentimento somente terá valor se for dado após o nascimento da criança.
§ 7o A família substituta receberá a devida orientação por intermédio de equipe técnica interprofissional a serviço do Poder Judiciário, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar. (grifos nossos)
Nossa interpretação do parágrafo sétimo acima negritado é no sentido de que o legislador afirmou que, na adoção consentida, não há necessidade de prévio cadastro dos pretendes a adoção, posto que nesta parte ele afirma que a família substituta receberá orientação da equipe técnica.
Assim, entendemos que o legislador não proibiu a adoção intuitu personae, mas com o temor de sempre, tratou de dificultá-la sob o argumento daqueles que a classificam como fraudulenta, desta forma abrindo brechas para que os interessados, nessa condição restritiva, optem por meios escusos como a adoção “à brasileira.”
Poderia ser questionado: por que o legislador não incluiu essa possibilidade como um inciso IV do parágrafo 13 do art. 50? É fácil responder. Não incluiu porque a adoção consentida está em outro título, em outra seção, tratada como um procedimento à parte das adoções previstas no art. 50. Dessa forma, não havia necessidade, bastando para isso uma interpretação harmônica e sistêmica, no rigor da melhor lógica jurídica, ou seja, não havia a necessidade de tal inclusão. O rol do parágrafo 13, do art. 50,não é taxativo e nem absoluto.
É certo que alguns Juízes de Direito, titulares nas Varas de Infância e Juventude, não interpretam como interpretamos, entendendo que o Cadastro Nacional de Adoção é essencial em todas as formas de adoção.
Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça já pacificou o entendimento de que a regra da inscrição prévia no Cadastro Nacional de adoção não é absoluta, devendo, em alguns casos, prevalecer os laços de afetividade e o vínculo (na maioria das vezes, informal) formado entre a criança e os adotantes, sempre sob o primado do melhor interesse do infante.
Vejamos:
“RECURSO ESPECIAL – AFERIÇÃO DA PREVALÊNCIA ENTRE O CADASTRO DE ADOTANTES E A ADOÇÃO INTUITU PERSONAE
– APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR – VEROSSÍMIL ESTABELECIMENTO DE VÍNCULO AFETIVO DA MENOR COM O CASAL DE ADOTANTES NÃO CADASTRADOS – PERMANÊNCIA DA CRIANÇA DURANTE OS PRIMEIROS OITO MESES DE VIDA – TRÁFICO DE CRIANÇA – NÃO VERIFICAÇÃO – FATOS QUE, POR SI, NÃO DENOTAM A PRÁTICA DE ILÍCITO – RECURSO ESPECIAL PROVIDO. I – A
observância do cadastro de adotantes, vale dizer, a preferência das pessoas cronologicamente cadastradas para adotar determinada criança não é absoluta. Excepciona-se tal regramento, em observância ao princípio do melhor interesse do menor, basilar e norteador de todo o sistema protecionista do menor, na hipótese de existir vínculo afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, ainda que este não se encontre sequer cadastrado no referido registro; II – E incontroverso nos autos, de acordo com a moldura fática delineada pelas Instâncias ordinárias, que esta criança esteve sob a guarda dos ora recorrentes, de forma ininterrupta, durante os primeiros oito meses de vida, por conta de uma decisão judicial prolatada pelo i. desembargador-relator que, como visto, conferiu efeito suspensivo ao Agravo de Instrumento n. 1.0672.08.277590- 5/001. Em se tratando de ações que objetivam a adoção de menores, nas quais há a primazia do interesse destes, os efeitos de uma decisão judicial possuem o potencial de consolidar uma situação jurídica, muitas vezes, incontornável, tal como o estabelecimento de vínculo afetivo; III – Em razão do convívio diário da menor com o casal, ora recorrente, durante seus primeiros oito meses de vida, propiciado por decisão judicial, ressalte-se, verifica-se, nos termos do estudo psicossocial, o estreitamento da relação de maternidade (até mesmo com o essencial aleitamento da criança) e de paternidade e o conseqüente vínculo de afetividade; IV – Mostra-se insubsistente o fundamento adotado pelo Tribunal de origem no sentido de que a criança, por contar com menos de um ano de idade, e, considerando a formalidade do cadastro, poderia ser afastada deste casal adotante, pois não levou em consideração o único e imprescindível critério a ser observado, qual seja, a existência de vínculo de afetividade da infante com o casal adotante, que, como visto, insinua- se presente; V – O argumento de que a vida pregressa da mãe biológica, dependente química e com vida desregrada, tendo já concedido, anteriormente, outro filho à adoção, não pode conduzir, por si só, à conclusão de que houvera, na espécie, venda, tráfico da criança adotanda. Ademais, o verossímil estabelecimento do vínculo de afetividade da menor com os recorrentes deve sobrepor-se, no caso dos autos, aos fatos que, por si só, não consubstanciam o inaceitável tráfico de criança; VI – Recurso Especial provido.
(STJ – REsp: 1172067 MG 2009/0052962-4, Relator: Ministro MASSAMI UYEDA, Data de Julgamento: 18/03/2010, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/04/2010)
Como se pode extrair do trecho da decisão do STJ acima transcrita, apesar de se tratar da existência de vínculo gerado por decisão judicial precária que formalizou a adoção de fato, entendemos que outras situações de fato, mesmo não amparadas por decisão judicial, merecem ter o mesmo tratamento. O que importa é a presunção da boa-fé, devendo a eventual má-fé dos adotantes restar provada nos autos para que se possa utilizá-la como fundamento de decidir.
A adoção fora do cadastro não pode ser peremptoriamente marginalizada sob a ilação generalizante de que em todos os casos há desvio de finalidade, com comercialização de crianças e tráfico de pessoas. Especialmente, porque as equipes interprofissionais das Varas da Infância e da Juventude e outros agentes públicos podem detectar tais irregularidades, produzindo, desse modo, lastro probatório considerável que, inclusive, poderá amparar, eventualmente, o devido processo penal, nos casos em que ocorrerem tais fatos.
Também entendemos que não se sustenta a alegação de que a adoção fora do cadastro seja um modelo injusto para com os candidatos que esperam na fila. Isso por que a “formalidade” da inscrição no Cadastro Nacional como condição para a entrega do infante à adoção é muito distante do conhecimento da sociedade marginalizada (a maior parte dos que entregam os filhos à adoção). Inúmeras são as peculiaridades que distinguem o tratamento dos fatos a alcançar o melhor interesse do menor (tomada aqui a regra abstrata que se sobrepõe à referida formalidade). O desconhecimento da existência de tal cadastro; a proximidade física das famílias (local de residência dos pais biológicos com os adotantes); a convivência desde os primeiros anos de vida do infante (mesmo que de forma eventual) com os possíveis adotantes; e, por fim, a confiança dos pais biológicos e dos seus parentes na idoneidade dos adotantes são alguns dos fatores que, certamente, relativizam a obrigatoriedade de cadastro prévio no CNA e do respeito à “fila” para adoção. Tudo isso, repetimos, observado atentamente “o melhor interesse do menor”.
Na realidade, não se está aqui a defender o não atendimento às formalidades legais e morais (prévio cadastro no CNA e respeito à fila). O que defendemos é a “equidade” na apreciação das diferentes realidades, ou seja, o tratamento diferenciado para situações peculiares e a interpretação principiológica das normas a fim de relativizar regras em situações nas quais se mostre admissível tal relativização. Entendemos que ambas as modalidades (cadastro e adoção dirigida) podem coexistir, a fim de que se valore, prioritariamente, os reais interesses dos menores, confiando-os às famílias substitutas dispostas a lhes dar amor, carinho, cuidado e proteção.
Seria deveras injusto (considerado, aqui, o sentido das regras no plano abstrato e principiológico) não permitir que uma criança que já tenha a convivência de fato com a família substituta – que já estabeleceu laços de afeto com tal família, ostentando todos os elementos necessários e saudáveis para incorporá-la formalmente a um verdadeiro lar, seja privada de tal direito, relacionado indissociadamente com a sua dignidade (aqui uma vertente da dignidade da pessoa humana constitucional).
Infeliz e injusta seria uma decisão judicial, nesses casos, ao retirar uma criança que já tenha convivência afetuosa com família substituta (no plano informal) para entregá-la ao Estado, apenas em cumprimento a uma formalidade legal (a despeito da interpretação da norma conforme a Constituição), qual seja a frígida observância do Cadastro Nacional de Adoção.
Retirar-se-ia a criança do seu “lar” de fato para jogá-la, em muitos casos, num “frio abrigo de menores”, deixando-a à espera de uma “nova sorte” de encontrar alguém que, de fato, queira lhe adotar.
Entendemos que o disposto no artigo 166 do ECA dá aos pais, ou à mãe biológica, o direito de escolher quem vai adotar seu filho, até porque ela é a maior interessada pelo bem-estar da criança e, muitas vezes, entregá-la para adoção, demonstra um ato de desprendimento e altruísmo, na medida em que contrário à própria natureza humana. Também, porque em seu coração de mãe, mesmo que errante e inconsequente, vislumbrou a genitora um futuro melhor para seu filho.
Apesar de nossa visão sobre o tema, sempre que atendemos casais que pretendem a adoção formal, tentamos orientá-los para que sigam todo o protocolo legal de modo que, atendidas as exigências, não tenham que contar com uma interpretação judicial que, sendo negativa, pode vir a causar-lhes muita dor e sofrimento.
A insegurança jurídica no Brasil, infelizmente, tem sido a regra (decisões conflitantes sobre um mesmo direito) e, por isso, é sempre necessário que um profissional acompanhe todo o caso para que possa ser amparado o requerente no sentido de estar munido de todas as formalidades necessárias, além das provas afetas aos requisitos (legais ou jurisprudenciais) exigidos para a conquista do direito pretendido.
Ressalta-se, por fim, o fato de o presente texto ter caráter meramente informativo, não constituindo qualquer intenção no sentido de induzir o leitor a litigar. Informa, sim, os eventuais direitos dos leitores e sua opção por contratar um advogado de sua confiança, sendo cediço que este profissional se mostra indispensável à administração da Justiça, atuando enquanto defensor do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e das garantias constitucionais fundamentais, mormente os preceitos da cidadania e da moralidade, da Justiça e da paz social, cumprindo-lhe exercer o seu ministério em consonância com a sua elevada função pública e com os valores que lhe são inerentes, entre eles o dever de informar a sociedade de seus potenciais direitos para que, com isso, se alcance a tão sonhada Justiça Social, tudo conforme preceito básico contido no art. 2º do Código de Ética da Advocacia.
(1) FONSECA, Gilson. Adoção civil e adoção estatutária, Minas Gerais, nov. 2004. Disponível em:
<http://www.mp.sc.gov.br/portal/site/portal/portal_impressao.asp?campo=2493&conteudo=fixo_detalhe>. Acesso em: 26/10/2018
Fernanda Campos – Advogada; Sócia Fundadora do Escritório Carvalho Campos & Macedo Sociedade de Advogados; Presidente do IPEDIS; Especialista em Direito Público; Trabalho e Processo do Trabalho; Previdenciário e Securitário; Professora, palestrante e Conferencista; Graduanda em Ciências Contábeis; Co-autora do Livro: Ônus da prova no Processo Judicial Previdenciário- Editora Juruá, 2018
Lucas Fonseca Teles Pereira – Advogado no Escritório Carvalho Campos & Macedo Sociedade de Advogados